sexta-feira, 12 de abril de 2024

Qual o lugar do automóvel em nossas cidades?

 

Autolib em Paris

Máquina cobiçada, que pouco a pouco foi ganhando mais e mais espaços na maioria das cidades do mundo, ela desalojou os pedestres para espaços residuais das ruas, as calçadas. Muitas vezes, estas se tornaram mais estreitas pelo alargamento das pistas, para dar passagem a uma frota que nunca parou de crescer. Não só as ruas se modificaram, mas também as edificações. Para acomodá-los, jardins se transformaram em garagens. Novos prédios foram construídos com vários pavimentos dedicados aos automóveis. Uma monstruosidade urbanística, que rouba janelas das baixas alturas, onde o pedestre poderia fazer contato visual com os moradores.

No Rio de Janeiro, a partir do ex-Governador Lacerda, cometeu-se o crime de extirpar uma ampla rede de trilhos para bondes, que cobriam a maior parte dos bairros, para dar mais espaços aos automóveis. E a partir daí, infindáveis recursos públicos, que poderiam ter sido aplicados em escolas e hospitais, foram direcionados para a construção de túneis e viadutos que prometiam o fim dos engarrafamentos. Era o período conhecido como rodoviarismo. Mal sabiam que quanto mais estruturas de trânsito são construídas, mais carros aparecem.

Até governos de esquerda recorreram a generosos incentivos fiscais à produção de automóveis, sem qualquer exigência de contrapartida de melhorias da eficiência dos mesmos do ponto de vista ambiental. É difícil mudar mentes que se formaram em momentos de ascensão do uso do automóvel.

No entanto, urbanistas e dirigentes municipais nas cidades mais inovadoras do mundo vêm agindo por uma “domesticação” dessa fera, reduzindo os espaços dedicados a ela. Calçadas voltaram a ser alargadas, ruas vêm sendo tornadas para uso exclusivo dos pedestres, estacionamentos nas vias públicas vêm sendo reduzidos e taxas vêm sendo instituídas para quem deseja circular de automóvel em áreas centrais. Em Paris, as pistas em torno de monumentos e de rótulas vêm sendo estreitadas para dar lugar a jardins e calçadas. Nova Iorque transformou Times Square em área de pedestres e alargou calçadas, assim como criou ciclovias em boa parte das avenidas da cidade. Londres taxa os automóveis que entram na sua área central.

O automóvel não precisará desaparecer, mas a necessidade de possuí-lo vem sendo relativizada. Em 2011 a região metropolitana de Paris foi a pioneira no lançamento de um serviço de carros elétricos compartilhados, o Autolib, no mesmo modelo das bicicletas compartilhadas, o Velolib. Inicialmente foram 300 veículos em 250 pontos, sendo 180 deles dentro daquela cidade. O objetivo seria alcançar um total de 3.000 veículos, disponíveis em 1.200 estações. Também a cidade de Berlim tem o seu sistema de carros elétricos para aluguel, o Flinkster.

As cidades brasileiras estão bastante atrasadas nesse processo. A parte da classe média com possibilidade de acesso à propriedade de um automóvel e as famílias mais ricas não querem saber de reduções nas benesses a esses seus entes queridos. E esses grupos têm um enorme poder de influência sobre as políticas públicas das cidades. No Rio, viadutos e túneis ainda são parte das obras prioritárias da Prefeitura.

Em 2011, no segundo mandato do atual prefeito, a Prefeitura do Rio de Janeiro abriu uma chamada pública no Diário Oficial para receber propostas de exploração de estações de carros elétricos compartilhados. No entanto, aparentemente não houve interessados, uma vez que o assunto não foi mais ventilado. 

Agora uma novidade vem de Niterói, com o início de um sistema de aluguel de carros urbanos compartilhados naquela cidade. Não é um projeto de iniciativa do poder público, mas um projeto da locadora LocaLivre em sociedade com a startup Walli. São carros convencionais, ou seja, não elétricos, acessados por aplicativo, como as bicicletas do Itaú, por exemplo. O aluguel custa R$ 12,00 a hora acrescidos de R$ 0,95 por quilômetro rodado, estando incluídos o combustível e o seguro. Inicialmente são duas estações, mas a pretensão dos investidores é de ter mais. É uma iniciativa ainda tímida, mas interessante de ser acompanhada.

Também em Niterói está surgindo um serviço público e gratuito de bicicletas compartilhadas, da Prefeitura, o Nit Bike. A municipalidade investirá cerca de R$ 8,5 milhões por ano no sistema, que permitirá o uso sem custo por até uma hora. Tendo percebido que o sistema privado de bicicletas compartilhadas não se interessava por bairros populares, a Prefeitura instalará suas estações também nesses locais.

A revisão do espaço dedicado aos automóveis nas cidades também precisa ser feita entre nós. O caminho é uma maior oferta de meios de transporte público de qualidade, que promovam a preferência por eles, em detrimento do carro. A disponibilização de automóveis para aluguel nas ruas vem ajudar, tornando a sua propriedade um luxo desnecessário. Pouco a pouco talvez vejamos o espaço desses veículos em nossas cidades ser reduzido, dando espaço a uma maior convivência tranquila entre as pessoas.  

Artigo publicado em 11 de abril de 2024 no Diário do Rio


 

sábado, 6 de abril de 2024

Confusa competição por investimentos


 Muito antes da Prefeitura do Rio de Janeiro dar início à operação urbana consorciada do Porto Maravilha, nome técnico para a intervenção urbana que lá ocorre, a cidade de São Paulo já vinha lançando mão desse instrumento. Água Espraiada, Água Branca e Faria Lima são algumas operações já em curso há algum tempo. Recentemente, o prefeito paulista lançou a operação urbana Bairros do Tamanduateí.

Nesse modelo, previsto no Estatuto das Cidades, são definidos potenciais construtivos, em geral generosos, os quais são leiloados como Certificados de Potencial Construtivo (Cepacs). Os recursos assim auferidos necessariamente precisam ser investidos em melhorias urbanas na área definida pela operação urbana consorciada, que deve ser aprovada na Câmara de Vereadores. No caso carioca, por falta de compradores, a Caixa Econômica assumiu o risco de arrematar as Cepacs, o que permitiu as obras de demolição da Perimetral, de construção do Túnel Marcelo Alencar, e da reurbanização do local. No entanto, por problemas inerentes ao projeto e devido a crises econômicas, a liquidez desses certificados permaneceu muito baixa. Em 2023 a operação do Porto Maravilha foi estendida para São Cristóvão, acrescentando 3,7 milhões de metros quadrados para a utilização dos Cepacs, o que poderá facilitar a sua venda.

Segundo matéria publicada no Jornal O Globo do dia 30 de março deste ano, as operações urbanas consorciadas paulistas têm deixado de ser interessantes para as construtoras, já que novas regulamentações trazidas pelo Plano Diretor local, de uma década atrás, criaram áreas mais vantajosas. Próximo às estações de trem e metrô e aos corredores de ônibus, o potencial construtivo passou a ser igual ou maior ao das áreas das operações urbanas consorciadas e o valor a ser pago pelo potencial construtivo, via outorga onerosa (são tantos instrumentos e definições!) é mais baixo do que o das Cepacs.

O que ocorre em São Paulo deve servir de alerta para o Rio de Janeiro. É preciso uma análise aprofundada e cuidadosa do que pode estar ocorrendo na cidade. A legislação Reviver o Centro, direcionada àquela área, vizinha à do Porto Maravilha e à de São Cristóvão, ao contrário da que se aplica nestas últimas, é baseada num sistema de prêmios. O construtor que edificar um novo prédio no Centro recebe o direito de acrescentar, em outro terreno mas em outra área da cidade, o mesmo potencial construtivo ali utilizado. Assim, o Centro, a Área Portuária e São Cristóvão são regiões com situações bem diversas entre si para o investidor.

Da mesma forma como ocorreu no Plano Diretor de São Paulo de uma década atrás, o plano que acaba de ser aprovado no Rio institui a cobrança de outorga onerosa para a maioria das áreas da cidade, ou seja, uma cobrança pelo licenciamento da metragem quadrada a ser edificada que ultrapasse a metragem quadrada do terreno (potencial construtivo igual a 1). O plano é majoritariamente construído para beneficiar o mercado imobiliário, com uma tendência à verticalização dos bairros. Novas oportunidades de verticalização estarão disponíveis, concorrendo não só com o Centro, mas também com as áreas já citadas, onde ocorre a cobrança de Cepacs.

Como se não bastasse, há um mercado consolidado, ainda com bastante demanda de construções na Barra e Recreio, regiões às quais as construtoras cariocas estão acostumadas e não parecem querer trocar por novos horizontes. Como o poder público se nega a tomar medidas mais objetivas que direcionem os investidores para áreas prioritárias, pouca coisa muda nesse cenário.  

Todas essas diretrizes contraditórias são fruto de legislações que não obedecem a um plano do que seja melhor para a paisagem carioca e para os moradores da cidade, e sim a interesses do mercado imobiliário. A este são oferecidas imensas oportunidades, mesmo que ao custo da perda de qualidade da vida urbana. Um problema é que o tal mercado é reticente, e sempre irá querer mais. O outro é que o excesso de vantagens pode acabar por inviabilizar as operações urbanas pretendidas pelo poder público.

Artigo publicado em 04 de abril de 2024 no Diário do Rio.

   

sexta-feira, 29 de março de 2024

 

A Belo Horizonte

Centenas de imagens chegam aos nossos olhos pela internet, embaralhando realidade e ficção, passado, presente e futuro. Algumas, como madeleines, evocam sensações quase esquecidas. Uma foto atual do Cine Brasil, com suas elegantes linhas Art Déco ressaltadas por seus vitrais iluminados à noite, me trouxeram à memória a Belo Horizonte de alguns anos de minha infância.

Frequentei aquele cinema muitas vezes, em situações diversas. Por ter conquistado o segundo lugar no concurso dos melhores dentes de leite da cidade, entre outros prêmios, fui dono de uma permanente para qualquer cinema da cidade. Era um passe livre, com direito à companhia de um adulto! Mas também frequentei os cinemas da cidade como acompanhante das primas, quando essas saiam com seus namorados. Era o que se chamava vela, uma garantia de que uma moça de família não estaria sozinha com seu namorado. Mas, no escurinho do cinema, o filme na tela, a pipoca na boca, quem daria conta do que se sucedia ente eles?

O Cine Brasil fica na Praça Sete, onde um obelisco, talvez um pouco diminuto para a monumentalidade que lhe é pedida, marca o centro de uma rótula, onde chegam diversas ruas. Não longe dali está o Viaduto Santa Tereza sobre a via férrea que leva ao bairro da Floresta, onde Drummond, e depois outros escritores mineiros costumavam se arriscar, passando por cima dos arcos que o sustentam. Logo ao lado, está o Parque Municipal, onde aos domingos, depois de conseguir acordar o tio que havia trabalhado até tarde da noite, íamos remar no lago, passando por baixo de pontes e contornando ilhotas artificiais.

Os passeios no parque eram o programa com os parentes de menos posses. Já com a madrinha, os passeios eram de carro. Ela, que era uma das primeiras mulheres a dirigir na cidade. Não importava a programação, se uma visita a um parente distante ou uma ida à feira. Se fosse de carro, lá estava eu, sentado no banco da frente, solto, pois não havia cintos de segurança, podendo colocar a cabeça para fora para observar as ruas, os passantes, as lojas e tudo o mais que fosse interessante. Não havia tantos carros em Belo Horizonte e os pedestres nas áreas mais movimentadas, atravessavam na frente dos carros, ainda sem perceber que a sua liberdade sobre as ruas estava em processo de encolhimento.  

Como esquecer da intensa arborização no meio da avenida Afonso Pena, bem na área central? Vistas do vidro da frente do carro, as copas das árvores criavam um rendilhado contra o céu, que filtrava a luz do sol. A luz sumia e reaparecia por entre as folhas, para deleite da criança maravilhada com os passeios pela cidade. Eram 350 Fícus benjamina, tristemente cortados às vésperas do golpe de 1964. Tal atitude malsã da prefeitura local já anunciava a aridez dos anos que viriam. Essa história se repete com o atual prefeito de Belo Horizonte, que corta árvores para instalar uma pista de corrida de automóveis. Nunca aprendem.

As compras na feira livre da avenida Afonso Pena eram um momento de mostrar simpatia, sorrir para os tantos adultos a quem era apresentado, dar oi para os feirantes, e ajudar a guardar tudo no carro. Ali perto ficava também a fábrica de laticínios, onde a compra do doce de mocotó em barra não podia ser esquecida.

Outro passeio comum no automóvel era a visita aos parentes. Havia a tia avó meio surda, que só se vestia de preto, havia a outra que era gorda e risonha e havia os tios negros, frutos das aventuras do bisavô. Outra visita era à casa da minha avó, de quem ouvia dizer que sofria com muito trabalho e poucos recursos, mas que era uma senhora afável e de sorriso fácil. Sorriso fácil como o do tio Lourival, outro que parecia estar sempre de bem com a vida. Ao contrário dos tios sorridentes, havia o tio sisudo e sua esposa empertigada, o único casal que eu conhecia que morava num prédio de apartamentos, com elevador, na praça Raul Soares. Quando era possível, dava uma espiada pela janela para ver a praça mais linda da cidade, com seus arbustos geometrizados e seu chafariz iluminado por luzes coloridas à noite. Circundar de carro a praça, apreciando os chafarizes, era um dos maiores prazeres que a cidade oferecia.

Belo Horizonte era então uma cidade aconchegante, de um tamanho que se podia percorrê-la quase por inteiro. Os bairros tinham suas praças, e nelas um jardineiro fixo cuidava das plantas com instrumentos de trabalho que ficavam guardados num baú na própria praça. Os pobres existiam, e eram vistos quando vinham às portas pedir uma ajuda. Mas não se sabia onde moravam. Eram invisíveis para a pequena capital, orgulhosa de sua modernidade.

O horizonte era marcado por montanhas, que ainda não haviam sido devoradas pela mineração. Para além das montanhas que circundavam a cidade, ficavam os clubes campestres, um programa incontornável nos fins de semana para quem tinha um pouco mais de recursos. As coisas e as pessoas pareciam estar em ordem, numa harmonia que deveria durar para sempre. Era doce e suave aquela Belo Horizonte.   

Artigo publicado em 28 de março de 2024 no Diário do Rio.

sexta-feira, 22 de março de 2024

Temos um plano para a crise climática?

foto Tomas Silva/Agência Brasil

Estamos em plena emergência climática, o que exige ações concretas, objetivas, que visem mitigar os seus efeitos e adaptar a cidade aos crescentes problemas que virão. Segundo a Prefeitura do Rio, a elevação do nível do mar poderá afetar 10% do território do município, os deslizamentos de terras poderão expor até 50% de sua área a esse risco, as ondas de calor, como a que atingiu a cidade neste mês de março, com sensação térmica de 62,3º em Guaratiba, atingirão toda a cidade e as inundações poderão afetar mais da metade do município.

Em 2021 a Prefeitura do Rio de Janeiro elaborou o Plano de Desenvolvimento Sustentável (PDS), considerado “o mapa e bússola que serve à construção de um Rio de Janeiro resiliente, próspero e orgulhoso de seu papel no Brasil e no mundo”. Ocorre que o PDS se propõe a ser um plano muito abrangente, com cinco temas transversais, trazendo aspirações e metas relacionadas a questões como cultura de paz, governança democrática, igualdade e equidade e longevidade e bem-estar. Se o conceito de desenvolvimento sustentável pede esta abrangência, a questão climática traz urgências inadiáveis. Como a maioria das metas do plano são estranhas à questão climática, apesar de não serem menos importantes, há uma diluição das metas relativas àquela questão e uma maior dificuldade de aferição dos resultados.

O PDS propõe ciclos temporais, com metas a serem atingidas. O primeiro ciclo seria o período 2020-2030, já em curso, com 134 metas e 978 ações. O segundo seria o período 2030-2040 e o último, o decênio até 2050. As metas dos dois últimos períodos são dependentes do que for alcançado no primeiro. Então, é fundamental que se tenha avanços reais até 2030.

O plano propõe que a cidade chegue à neutralidade na emissão de carbono até o ano 2050, com uma redução de 20% em relação ao ano base de 2017 já em 2030, ou seja, daqui a seis anos. Atualmente, de acordo com o Inventário de Emissões-Base da Cidade de 2017, essas emissões totalizam 11,3 milhões de toneladas de carbono equivalente. O setor de transporte é o principal emissor (41,25%), seguido pelos setores de energia estacionária (30,24%), que se refere ao consumo de energia elétrica e combustíveis em edificações e instalações, indústrias e atividades rurais, e resíduos (28,51%). Assim, esses três principais setores precisam receber mais atenção e projetos que alterem essa realidade.

No setor de transportes, um dos projetos para mudar esta situação é a eletrificação de 100% da frota de ônibus municipais até 2050. Para 2030, 20% da frota já seria composta por veículos não emissores. No entanto, recentemente, a Prefeitura adquiriu 713 ônibus novos para o sistema BRT, dos quais 427 já estão operando. A Prefeitura anunciou também a compra de mais 150 ônibus para suprir as linhas regulares desaparecidas na cidade. Mas em nenhuma dessas compras há ônibus elétricos.

Atualmente a cidade conta com 450 km entre ciclovias, ciclofaixas e faixas compartilhadas. O plano propõe um acréscimo de mais 160 km até 2030. O Plano propõe também “garantir que ao menos uma área da cidade tenha emissão zero de carbono”. Aparentemente, a área escolhida foi o Centro, definido em 2022 como Distrito de Baixa Emissão de Carbono. O PDS apresenta a imagem de um possível projeto para a avenida Presidente Vargas, em que pistas atualmente dedicadas aos veículos sejam transformadas num bulevar arborizado, com lâminas d’água, ciclovias e uma faixa exclusiva para carros elétricos. No entanto, recentemente a Prefeitura decidiu retirar o status de rua de pedestre da Rua Uruguaiana, abrindo-a ao tráfego de veículos. Parece bem contraditório.

Visando intervir nas emissões relacionadas ao consumo de energia, o plano prevê a instalação de três fazendas solares para a geração de energia em aterros sanitários desativados do município. A primeira seria no Aterro Sanitário de Santa Cruz, já tendo ocorrido, em 2023, a licitação da parceria público-privada para a sua implantação. Conforme anunciado, serão cerca de 11 mil painéis, capazes de gerar energia suficiente para abastecer 45 escolas municipais ou 15 UPAs.

No setor de resíduos há muito que avançar. Em 2015, a coleta seletiva representou apenas 0,56% do total de resíduos coletados pela Comlurb. Atualmente 122 bairros (74,4%) são atendidos pela coleta seletiva, o que não significa que a totalidade desses bairros esteja coberta. Para 2030, o plano propõe que 100% dos bairros sejam atendidos pela coleta seletiva. Mas além dessa abrangência é preciso que haja uma coleta realmente significativa. A meta para 2030 é que 35% dos resíduos secos da cidade (vidro, papel, plástico e metal) sejam reciclados, índice que saltaria para 80% em 2050, um salto gigantesco.

O PDS define como meta que “Nenhuma pessoa em áreas de alto risco de inundações e nenhuma moradia em áreas de alto risco de movimentos de massa nas áreas mapeadas e identificadas pela Prefeitura do Rio.” Essa é uma meta ambiciosa, que requer ações imediatas. No entanto, não consta que exista um programa de reassentamento de famílias vivendo em áreas vulneráveis na escala necessária. Além disso, o aquecimento global irá gerar novas áreas de risco, que talvez não tenham sido ainda identificadas.

São aspirações do plano garantir a proteção de 100% das áreas prioritárias definidas como de relevante interesse ambiental, por meio da criação de Unidades de Conservação, além de realizar o manejo de 3.400 hectares de áreas florestadas e consolidar 1.206 hectares de floresta no município. O plano propõe também a reabilitação de áreas da cidade que conformam ilhas de calor, especialmente em bairros das zonas Norte e Oeste, onde há uma carência assustadora de áreas verdes. Na AP5, a área mais carente da Zona Oeste, há apenas um parque, a Fazenda do Viegas, bastante maltratado e com área correspondente a pouco mais da metade daquela do Campo de Santana, no Centro. A Zona Norte conta com nove parques, sendo o de Madureira o único bem cuidado.

PDS propõe 16 “corredores verdes”, sendo oito na Zona Norte e quatro na Zona Oeste, nos quais haverá ações de arborização urbana, requalificação de praças, reconexão entre áreas florestadas entre si e com fragmentos de vegetação nativa e demais áreas verdes. O mais emblemático desses corredores é o que pretende conectar o Parque Estadual da Pedra Branca ao Parque Nacional da Tijuca, as duas maiores unidades de conservação cariocas. Estão previstas também ações de aumento da permeabilidade do solo, e drenagem que siga o conceito de soluções baseadas na natureza.

Citando o PDS, neste mês de março, o Prefeito editou o Decreto 54.069, que cria o programa “Cada favela, uma floresta”. O programa ainda deverá ser regulamentado pela Secretaria de Meio Ambiente e, se bem gerenciado, pode vir a ser uma contribuição importante. A Prefeitura já conta com os programas Guardiões das Matas e Guardiões dos Rios, ou seja, não faltam pessoas envolvidas com os problemas ambientais da cidade. Os resultados, se existem, precisam ser mais bem divulgados.

Apesar das intenções do PDS, de forma absurdamente contraditória, em 2023 as autorizações para remoções legais de árvores na Cidade do Rio de Janeiro cresceram 180%. Foram 11.730 árvores a menos, o maior número dos últimos oito anos. Somente um empreendimento da Cyrela Empreendimentos na Barra da Tijuca recebeu licença para o corte de 1.160 árvores. Esse dado estarrecedor tem tudo a ver com a retirada, a partir de 2021, da área de licenciamento ambiental da Secretaria de Meio Ambiente, transferindo-a para a Secretaria de Desenvolvimento Econômico. A Prefeitura colocou a economia à frente do meio ambiente, deixando aquela secretaria capenga.

Além das contradições com o plano presentes na gestão da cidade, o PDS também entra em contradição com decisões da Câmara de Vereadores da Cidade. A revisão do Plano Diretor, recentemente aprovada naquela casa, permitiu a abertura de vias acima da cota 60, o que impacta as áreas florestadas. Outra decisão da Câmara foi a de não incorporar a proposta de se estabelecer áreas rurais na cidade, onde tal atividade seria prioritária. Mas o PDS propõe o fortalecimento e ampliação das áreas destinadas à produção agrícola, com aumento em 2030 de 20% das áreas destinadas a essa atividade.

Em apenas três meses de 2024, o Brasil já teve três ondas de calor. No ano anterior foram nove. Neste final de semana se anuncia a chegada de uma frente fria com riscos de inundações. A crise climática nos pega pouco prevenidos. Temos um plano para o enfrentamento da crise climática, mas ele é pouco conhecido da população, suas metas estão em flagrante contradição com práticas atuais da administração da cidade e com a prática legiferante da Câmara de Vereadores. Além disso, considerando as ambições temporais do plano, poucos projetos estão em execução. É bom ter um plano, mesmo que com problemas. Mas não o ver ser colocado em prática é que não é nada bom.

Artigo publicado em 21 de março de 2024 no Diário do Rio.


domingo, 17 de março de 2024

A rua do sexo

A prostituição é um fato urbano normal e já ocorreu na Cidade do Rio de Janeiro em diversos lugares. Existiu, por exemplo, na Lapa, em casas e sobrados, na Praça Onze, onde foram famosas as polacas, e na Rua Alice. A Praça Onze foi arrasada para a abertura da avenida Presidente Vargas. A Lapa sofreu uma forte repressão contra a boemia no Estado Novo e o casarão da Rua Alice não resistiu às mudanças de hábitos da classe alta que o frequentava. Já o Mangue era uma área de prostituição mais aberta e popular, nas ruas, formada a partir da década de 1920. Há cálculos que contabilizam oito mil mulheres ali trabalhando no seu auge, nos anos 1940. Durante a ditadura militar, já em processo de redução, a zona de prostituição foi cercada por tapumes, com entradas disfarçadas entre os mesmos, por onde os clientes se esgueiravam.

O último reduto da prostituição no Mangue foi a Vila Mimosa, uma vila que se situava onde hoje se encontra o Teleporto, na Cidade Nova. Para a reurbanização do local, que incluía a construção da atual sede da Prefeitura, buscou-se realocar aquele núcleo resistente de prostituição num galpão em Gramacho, Duque de Caxias. Mas, com a oposição da prefeitura local, a Prefeitura do Rio acabou transferindo as cerca de 1.800 mulheres para um antigo galpão de um frigorífico na rua Sotero dos Reis. Essa transferência produziu a renomeação do local para Vila Mimosa, assim como o prédio da Prefeitura ganhou a alcunha de Piranhão.

Junto à Rua Sotero dos Reis há ruas com galpões industriais, sobrados e vilas residenciais, clubes de motos e oficinas. A rua Ceará é a rua onde é maior o comércio. Em outros tempos, em certos dias da semana, a rua onde fica a Vila Mimosa se tornava uma via intransitável, tal a quantidade de pessoas que por lá circulavam. Elas buscavam encontros, ou apenas bebiam do lado de fora dos bares e boates. Isso mudou muito. Hoje o movimento é bem menor do que já foi e concentra-se nos locais fechados. Uma das razões é o advento de aplicativos, disponíveis em celulares de qualquer um, o que reduz a busca por um local onde conhecer profissionais do sexo. 

Um estabelecimento típico da Vila Mimosa são os mini-centros comerciais, onde o possível cliente circula por corredores estreitos, em forma de U, desembocando novamente na rua. Esses corredores são ladeados de pequenos bares e boates, onde a música alta e variada tenta demarcar diferentes territórios. Nas portas, mulheres em colantes cavados convidam o passante a entrar. Lá dentro, outras dançam ou bebem, à espera de quem tope um programa. Combinado o preço, sobe-se para cabines no primeiro pavimento, pagando algo como 20 reais a meia hora pelo aluguel do local. Mais barato do que a cerveja embaixo. Esse mesmo esquema ocorre nas boates ao longo da rua. 

É da venda de bebidas, a preços salgados, e do aluguel de quartos e cabines que vivem os que exploram esse comércio. Autodenominam-se rufiões, em oposição aos cafetões, que seriam aqueles, hoje mal-vistos, que explorariam a renda das profissionais. Essa seria uma nova acepção da palavra rufião, já que os dicionários mais tradicionais não diferenciam as duas expressões. 

A Vila Mimosa conta com uma associação e as profissionais são acompanhadas regularmente por um médico voluntário e por assistentes sociais, mantendo seus exames de AIDS e outras DSTs em dia. Algumas são também beneficiadas com bolsas-família. Ao contrário do que se pensa, elas não moram nos locais de trabalho, tendo suas vidas e famílias longe dali.

Não só o movimento de clientes anda menor. Também as profissionais já estão em menor número. Algumas optaram por outras profissões, após cursos de capacitação promovidos por governos anteriores ao interregno da extrema-direita. Para piorar, paira a ameaça da concorrência com a prostituição das travestis e trans, que fazem ponto perto da Quinta da Boa Vista. Quando essas se aproximam, são rechaçadas pelas meninas da vila, que acreditam que boa parte da clientela masculina anda preferindo as outras. A pós-modernidade não é simples...

Apesar de tudo, a rua Sotero dos Reis e sua Vila Mimosa resistem. Os comerciantes reclamam dos valores do IPTU, do abastecimento de água e da limpeza urbana. Recentemente, a Prefeitura do Rio conseguiu a cessão da antiga Estação Leopoldina e do terreno a ela adjacente. Segundo divulgado pela própria Prefeitura, a estação será restaurada e serão edificados um centro de convenções, instalações para uma Cidade do Samba 2, e um conjunto habitacional do Minha Casa Minha Vida. Nada foi dito sobre melhorias na área residencial junto à Vila Mimosa e na própria Sotero dos Reis. É importante que se tenha um olhar generoso e não preconceituoso para aquela área. Os moradores que lá estão resistem a anos de abandono. E uma rua do sexo bem cuidada é algo que existe em diversas cidades do mundo.


Artigo publicado em 14 de março de 2024 no Diário do Rio.

segunda-feira, 11 de março de 2024

Asfaltar o Morro da Providência

 

O Morro da Providência é uma área de ocupação já muito antiga. Lá está a favela do mesmo nome, cujo início se deu em 1897, sendo considerada a primeira do Brasil. Há casas menos acabadas, mas também há diversos sobrados do início do século passado. O tempo consolidou-o como um espaço de moradia de trabalhadores e de produção de cultura popular.

A última intervenção desastrada e autoritária ali realizada foi uma tentativa de demolição de casas, algumas por estarem em áreas de risco, e outras por estarem no caminho da construção do teleférico. Os moradores de 832 casas, o que representava 1/3 da comunidade, se depararam com números pintados nas suas fachadas, de forma totalmente desrespeitosa, indicando que estavam condenadas. Mas, graças à sua mobilização, o número de remoções acabou sendo menor. Em 2014, veio o teleférico. Dois anos após a sua inauguração, veio a paralisação do serviço, e também a promessa de que voltaria a funcionar. Ainda não voltou.

Como área antiga da cidade, as vias pavimentadas do morro o são em paralelepípedo, algo que também ocorre em ladeiras de Santa Teresa, por exemplo. Esse tipo de pavimentação tem várias qualidades. É permeável e retarda a descida das águas pluviais, o que é uma grande vantagem em uma situação de crise climática. Esteticamente, é bastante superior ao asfalto e admite um matinho crescendo em suas frestas. Mas precisa de manutenção. Com o excesso de chuvas e veículos pesados passando quando o solo está encharcado, podem ocorrer deformações. Nada que uma boa manutenção não resolva.

Apesar de todas as suas qualidades, a Subprefeitura do Centro decidiu cobrir com asfalto as vias em paralelepípedos. De acordo com o entusiasmo do responsável pelo órgão, imagina-se que ele seria capaz de asfaltar até as vielas de Ouro Preto! O asfalto reflete mais calor, acelera a descida das águas pluviais, não é permeável, e é feio. Mas, obviamente agrada a uma parcela dos moradores que têm carro, que creem que circularão sobre um tapete. Um tapete que tende a se desgastar e se amoldar às deformações que continuarão a ocorrer na pavimentação em paralelepípedo logo abaixo.

Essa é a mesma prefeitura que faz parte do C40, uma rede global de cidades que se propõem a enfrentar as consequências da crise climática. Parece estranho, não? No entanto, ao se verificar que, na atual administração, o prefeito separou o licenciamento ambiental da gestão do meio ambiente, entregando-o a alguém mais conectado com o mercado imobiliário, percebe-se que esta forte incongruência é proposital. 

Os problemas advindos dessa desconexão entre a gestão ambiental e o licenciamento são tão gritantes, que a Vereadora Luciana Boiteux protocolou um pedido de CPI sobre o licenciamento urbano e ambiental. Enquanto a sua instalação aguardava parecer de Carlo Caiado, presidente da Câmara de Vereadores do Rio, alguns vereadores foram convencidos a retirar seu apoio à CPI. Assim, ao mesmo tempo em que coisas agressivas ao meio ambiente são licenciadas ou executadas à revelia da Secretaria de Meio Ambiente, a administração da cidade se mostra ao exterior como uma joia de consciência ambiental. Não é desejável, não queremos que seja como diziam nossas avós, por fora bela viola, por dentro pão bolorento.

Já há muito tempo que a questão ambiental deixou de ser encarada como uma área setorial, relegada à uma secretaria do meio ambiente. De forma a enfrentar os tremendos desafios da crise climática e a complexidade dos desafios ambientais, a busca pela sustentabilidade ambiental deve ser vista como algo transversal a toda a administração pública. Decisões econômicas, projetos de engenharia, projetos urbanísticos e de mobilidade, projetos habitacionais, drenagem, tudo isso deve ser perpassado por uma visão sistêmica, que tenha um norte, a sustentabilidade ambiental. Do jeito que está no Rio de Janeiro, não só estamos atrasados, como estamos regredindo.  

Em outubro haverá eleições para o próximo mandatário da Prefeitura. O atual prefeito deseja, e deverá contar com o apoio do PT e dos demais partidos da Federação Brasil da Esperança. Seria um momento interessante para que este partido, que já se encontra incorporado à administração atual, aproveitasse para rediscutir os princípios em que tal apoio se dará. Especialmente, nas áreas do urbanismo, meio ambiente e urbanização de favelas, onde há dinâmicas que precisariam ser rediscutidas e ajustamentos importantes a serem feitos. 

Artigo publicado em 07 de março no Diário do Rio.


sábado, 2 de março de 2024

Mais um plano?

 

Em novembro de 2022, o BNDES anunciou que, em parceria com a prefeitura carioca, iniciaria um estudo para a requalificação de imóveis públicos no centro do Rio de Janeiro. O alvo inicial seriam 75 ativos imobiliários, cujos proprietários seriam procurados ao fim do estudo para que fossem sondados sobre o seu interesse em participar da estruturação de projetos junto àquele banco de investimentos. A iniciativa era muito bem-vinda, já que, absurdamente, o poder público mantém centenas de imóveis ociosos na área central da cidade. Recentemente, foram divulgados os resultados desse estudo, definidos como um Masterplan do Centro do Rio de Janeiro. O que seria um estudo de aproveitamento de imóveis ociosos extrapolou para um plano bem mais ambicioso, que exigiria da atual administração municipal uma complexa mudança conceitual na forma como vem administrando a cidade e aquela área em particular.

Os imóveis que fazem parte do estudo incluem terrenos já edificados ou não. Para todos eles foram feitos estudos volumétricos de aproveitamento. Curiosamente, foram ignorados dois terrenos da Rua da Carioca, na esquina da rua República do Paraguai, e um imenso terreno na Presidente Vargas, junto ao Museu Casa de Deodoro, invadido desde a década de 1990 e nunca retomado pela Prefeitura.

Para o terreno junto ao INCA, é proposta a ampliação do hospital, com a inovação de se reservar uma parte do mesmo para habitações. Para o antigo Moinho Fluminense é proposto um mix de residências, comércio e esportes. Para a sede da Polícia Federal, na Praça Mauá, é indicado o uso misto, abrigando residências e estabelecimentos comerciais voltados para a economia criativa e a gastronomia. A Polícia Federal seria realocada num terreno ao lado do INTO. Para o edifício junto à Central do Brasil, a proposta é transformá-lo num edifício residencial com comércio no térreo. O terreno da ESDI, na Cinelândia, seria intensamente edificado, com substituição das suas atuais instalações. Já para o Palácio Gustavo Capanema nenhuma alteração significativa de usos é proposta, salvo a possibilidade de um restaurante panorâmico na sua cobertura. 

Um problema recorrente no estudo é a não compreensão das restrições trazidas por tombamentos, algo pouco compreensível num estudo com tantas consultorias. Para o imenso terreno junto à antiga estação da Leopoldina, é feita uma proposta, cuja volumetria e organização espacial é qualitativamente superior àquela apresentada pela Prefeitura no processo de cessão do imóvel, cuja implantação lembra a de um conjunto habitacional da década de 1970. No entanto, o estudo do Masterplan erra ao propor um volume muito contrastante em altura ao lado do bem tombado e ao propor edificar sobre as plataformas da antiga estação, que são igualmente tombadas. Para o conjunto de imóveis na Rua da Carioca 35, 37, 39, 43, 45, 47e 49, que incluem o Cine Íris e o Bar Luiz, o estudo propõe edificar em maior altura no miolo dos bens tombados. Somente uma interpretação excessivamente liberal do instrumento do tombamento permitiria algo assim. Por fim, no terreno da antiga Academia de Belas Artes, é proposta uma edificação com ocupação intensa do terreno, ignorando que o Corredor Cultural prevê uma praça cercada de edificações baixas no local.    

O que mais chama a atenção no Masterplan do BNDES são as propostas para o espaço público. Dentre os objetivos a serem alcançados pelo estudo, são listados um equilíbrio entre a oferta de moradias e empregos, a necessidade de um planejamento de longo prazo, a criação de polos mistos temáticos, e a busca por um Centro mais verde e sombreado, com calçadas convidativas, ciclovias e áreas de trânsito de baixa velocidade e intensidade. Para tanto, diversos aspectos do urbanismo contemporâneo, mais voltado para as pessoas e com atenção ao meio ambiente, são tomados como referências. Além dos aspectos já citados acima, são lembrados também o aumento das áreas verdes nas cidades, as fachadas e os tetos verdes, e a baixa altura das edificações, algo que contraria a prática legislativa da atual administração municipal. Como infraestrutura urbana, são listadas as propostas relacionadas com os conceitos de cidade esponja e de soluções baseadas na natureza, que envolvem maior permeabilidade do solo urbano, melhor gestão dos recursos hídricos e das águas das chuvas.

Partindo dessas premissas, são feitas propostas de novos parques e praças no Centro, corredores onde a circulação de pedestres seja prioritária, denominados no projeto de bulevares verdes e azuis. Verdes seriam os sombreados por arborização. E azuis, aqueles em que é proposta a criação de sistemas de jardins de chuva e a renaturalização de cursos d’água existentes, como o Canal do Mangue, o que incluiria transformá-lo num canal de terra. Se o alargamento das calçadas laterais da avenida Presidente Vargas, a redução das vias para veículos e a introdução de jardins de chuva são fáceis de entender como algo benéfico do ponto de vista ambiental, apesar de difícil implementação, a retirada da pavimentação do leito do canal é algo a ser melhor discutido. Vale lembrar que ele é um canal artificial de drenagem de uma grande área anteriormente pantanosa. Seria preciso estudar os efeitos geológicos e sanitários da infiltração de suas águas, que não são nada limpas, no subsolo da região.

Uma via paralela à avenida Presidente Vargas, a avenida Marechal Floriano, também seria alterada, com retirada total do tráfego de veículos, sendo permitido, além de pedestres, apenas o VLT e ciclovias. Não fica claro se haveria permissão para a circulação de veículos de carga e descarga ou para veículos demandando garagens. A rua do Riachuelo é outra via que teria seu tráfego reduzido. É ainda sugerida a redução dos ônibus da Rua da Carioca. Todas essas são vias no sentido de ligação do Centro com a Zona Norte, o qual perderia muito espaço para veículos.

Apesar de problemas pontuais na definição das volumetrias propostas, pode-se dizer que o BNDES convidou a Prefeitura para uma verdadeira sopa de pedras. Ingredientes interessantes, oriundos de uma visão mais conectada com um urbanismo sustentável foram sendo acrescentados a essa sopa. O que seria apenas um momento para pensar a destinação de imóveis públicos acabou sendo um plano abrangente, audacioso, com propostas de intervenções radicais no desenho urbano do Centro. As sugestões de edificações de baixa altura, com mistura de usos, diversidade de usos, fachadas ativas, ou seja, pavimentos térreos usados por comércio e demais andares voltados para as ruas, diferem das propostas ultimamente enviadas pela administração municipal para a aprovação semiautomática da Câmara de Vereadores. Os projetos apresentados para o espaço público são um desafio a que a Prefeitura demonstre que a sua participação em fóruns internacionais de cidades sustentáveis é séria. O plano foi feito, recursos foram gastos em sua elaboração, e veremos se será implementado, ou se será mais um para as prateleiras da Prefeitura.   

https://www.bndes.gov.br/arquivos/fep-masterplan-rio/bndes-centro-rio-rj-produto-6-anexo-m.pdf

Artigo publicado em 29 de fevereiro de 2024 no Diário do Rio.

terça-feira, 27 de fevereiro de 2024

Que venham os ônibus elétricos

pátio de recarga de ônibus em Berlim

Nesse carnaval, e nos anteriores, o metrô do Rio funcionou seguidamente, dia e noite. É quando acontece uma das situações mais interessantes da cidade, que é entrar nos trens e ver pessoas alegres e fantasiadas. Nos horários de desfiles na Sapucaí, a coisa fica ainda mais interessante, porque as fantasias são grandes e elaboradas, num maravilhoso contraste com a maior seriedade do dia a dia. No entanto, para chegar a uma estação do metrô o passageiro sofreu, porque os ônibus quase desapareceram das ruas nesses dias. A falta de respeito de cada dia com o usuário é elevada à máxima potência durante a folia.

O sumiço de linhas de ônibus ocorrido no Rio de Janeiro durante a pandemia até hoje não foi completamente revertido. Mas mesmo aquelas linhas restabelecidas continuam a contar com poucos veículos, provocando longas esperas em pontos de ônibus analógicos, em que não é possível saber quando o próximo ônibus virá. Não é assim nas cidades dos países mais desenvolvidos, e nem tampouco em diversas cidades do Brasil, onde a qualidade da mobilidade urbana é um dos seus principais pontos positivos.

Se ter um sistema de ônibus que funcione de forma razoável, e com conforto, é algo ainda distante para os cariocas, muito mais distante é ter um sistema voltado para a sustentabilidade ambiental. Além de barulhentos, com uma frota não completamente dotada de ar-condicionado, nossos ônibus são de motores a diesel, ou seja, poluentes, emissores de gases do efeito estufa. Considerando as metas brasileiras, referentes ao Acordo de Paris, de zerar a emissão líquida de gases do efeito estufa até 2050, é fundamental o engajamento da cidade na eletrificação da sua frota de ônibus urbanos. Cada ônibus elétrico nas ruas representa uma redução aproximada de 100 toneladas de CO2 na atmosfera por ano.   

De acordo com a plataforma E-bus, que monitora o uso de ônibus elétricos na América Latina, atualmente o Brasil conta com apenas 444 ônibus com esta característica. Na América Latina já são 5.084 os ônibus movidos a eletricidade, o que inclui trólebus e mistos. Os países latino-americanos que lideram essa estatística são o Chile, com 2.043 ônibus elétricos, e a Colômbia, com 1.590. A cidade de São Paulo conta com 269 ônibus elétricos, a maior frota entre as cidades brasileiras. No final de 2023, a capital paulista conseguiu a aprovação pelo BNDES de R$ 2,5 bilhões, destinados à compra de até 1,3 mil veículos, o que representaria 10% da sua frota atual.

No Estado do Rio de Janeiro, apenas Volta Redonda aparece no cômputo do E-bus, com ínfimos três ônibus. Segundo essa plataforma, a cidade do Rio de Janeiro não conta com nenhum ônibus elétrico. E não há sinais de busca por eletrificação da frota carioca. Desde que começou a reformar o sistema BRT, sucateado na administração Crivella, a Prefeitura, segundo a SMTR, adquiriu 713 ônibus, dos quais 427 já estão operando, substituindo os antigos azuis. Eles são modelo Padron, com motor traseiro e tecnologia Euro 6, menos poluente. Mais recentemente, o prefeito anunciou a compra de mais 150 ônibus para suprir as linhas desaparecidas na cidade. Mas em nenhuma dessas compras há ônibus elétricos.

A cidade pode estar perdendo uma grande oportunidade, já que o BNDES, através do Fundo Clima, conta com R$ 10 bilhões em caixa para financiamentos desses veículos, com juros subsidiados e prazos de quitação mais longos do que os de mercado. Outra fonte de financiamento é o PAC Seleções, que destinará R$ 3 bilhões para a renovação das frotas das prefeituras. O governo federal vem também elaborando medidas para impulsionar a produção nacional de ônibus elétricos.

A cidade de Niterói, que desde 2021 conta com uma Secretaria Municipal do Clima, a primeira do país, já testou modelos de ônibus elétricos das empresas BYD e HIGER, para possível adoção no sistema de transportes coletivos. Um dos grandes desafios para a adoção desses veículos é o correto equacionamento do carregamento das baterias, de forma a mantê-los funcionando nos períodos necessários. A prefeitura de Niterói solicitou à COPPE um estudo de viabilidade, que mostrou que o sistema pode ser viável, com um menor custo de manutenção do que os ônibus convencionais, e com uma energia mais barata do que o diesel. A médio prazo o sistema poderia até ser superavitário.   

Envolvendo uma escala bem maior, o sistema de transporte público de Berlim, operado pela empresa estatal BVG, vem realizando a troca de sua frota convencional por ônibus elétricos, já contando com 200 unidades desses veículos, a maior frota da Alemanha. O projeto envolve a troca de 1600 veículos em alguns anos, assim como a criação de uma completa infraestrutura para a sua recarga e manutenção. Algumas áreas da cidade começam a contar também com miniônibus elétricos, sem motoristas, capazes de conduzir os passageiros aos destinos desejados.

Não são poucos os desafios para a implantação de sistemas de ônibus elétricos nas cidades. Os investimentos iniciais são altos, já que o custo unitário desses veículos pode ser três vezes maior do que o de um ônibus convencional. Mas com custos de manutenção menores e os benefícios ao clima e ao meio ambiente, é uma alternativa que deve ser encarada. É preciso sair da inércia, e dar início a um projeto de eletrificação da frota de ônibus urbanos do Rio. Uma melhor qualidade de vida hoje e no futuro são razões mais do que suficientes. E os cariocas teriam mais um excelente meio de transporte para andar fantasiados no carnaval.

artigo publicado em 22 de fevereiro de 2024 no Diário do Rio


sexta-feira, 16 de fevereiro de 2024

Para todos

Você gosta de carnaval? Sentado naquele banco, vendo o bloco passar, ele ouviu a pergunta banal, vinda de um folião, que junto com um grupo de amigos, havia se sentado ao seu lado. 

Você gosta de ver os jovens alucinar, né? Lembrado de que não era mais jovem, ele respondeu que sim, que amava o carnaval. Mais não disse. No entanto, ali entre desconhecidos, vendo um bloco que não o empolgava, se viu como uma figura estranha à paisagem. 

 

Pensou que, de alguma forma, aquela não era mais a sua cidade. Os edifícios, apesar de tanta destruição e especulação, ainda eram reconhecíveis. As ruas e as praças idem. Mas as pessoas em volta lhe eram totalmente desconhecidas. Não havia chance, como em outros tempos, de encontrar um amigo, um conhecido, um colega de trabalho. Outras gerações haviam chegado. Deviam ser os netos, ou filhos, daqueles com quem um dia havia brincado.

 

O que sentia não era agradável. Isolado na multidão, pensou onde andariam os seus, mesmo aqueles de quem tinha uma vaga lembrança de já ter encontrado. No Facebook havia as suas fotos e, de quando em vez, uma postagem ou uma reação ao que escrevia. Mas lá estava também cheio de fotos daqueles que se foram. Memórias fixadas, que ano a ano têm os seus aniversários lembrados. E até alguns parabéns oferecidos por parte de algum desavisado. Um mundo de amigos e conhecidos em profusão, mas menos real do que o peso do isolamento naquele bloco de carnaval. 

 

A pergunta do folião distraído o havia jogado direto na quarta-feira de cinzas. Num lugar de melancolia. Num limbo reservado aos que insistem em permanecer por esse mundo além da juventude e do vigor físico. 

 

Era preciso reagir, voltar à folia. O uísque na garrafinha de metal ajudaria. Tomou logo dois grandes goles. Andou para mais perto dos instrumentos. O som da bateria sempre ajudava. Olhou em volta, viu pessoas bonitas por perto, meninos alegres se beijando, meninas desinibidas da geração do não é não. Sentiu que dava para entrar no ritmo, e se foi, anônimo na multidão, buscando também alucinar. 


Artigo publicado em 15 de fevereiro de 2024 no Diário do Rio.

segunda-feira, 12 de fevereiro de 2024

A rua é do carnaval

 

Tudo o que hoje é consagrado no carnaval carioca surgiu da criatividade e da espontaneidade do seu povo. Desde o Zé Pereira, ou mesmo antes, tem sido assim. Existe uma ocasião festiva e existem a gaiatice e a alegria dos que habitam estas paragens. Junta-se a fome com a vontade de comer. No entanto, já há alguns anos passou a se utilizar no Rio a expressão Carnaval não Oficial para designar o que talvez seja a atual verdadeira expressão dessa festa. 

 

As escolas de samba, que hoje têm o seu lugar de desfile e subvenções do poder público, surgiram pequenas, pobres, desfilando nos subúrbios. Blocos, como o Bola Preta, também surgiram pequenos. As exceções são os tais megablocos, que já nascem grandes e ricos, com patrocínios para alugar caminhões gigantes, onde um artista famoso reforça seu marketing. Mas esse é um modelo que já chegou pronto e poderoso, com poucas raízes na festa carioca. Segundo Kiko Horta, um dos fundadores do Cordão do Boitatá, "todo dia surge um megabloco, a cidade fica tomada, e a organização do carnaval fica direcionada para eles".

 

O Carnaval de rua é aquele espontâneo, que nos surpreende e encanta, que parece estar em todos os lugares, e que dá densidade à festa. Sem ele, restariam só o Sambódromo e alguns bailes privados. Lá pela década de 1970, o carnaval do Rio era assim, as ruas estavam vazias. Mas, há algumas décadas, o carnaval de rua retomou sua força. E isso vem ocorrendo em ciclos de crescente criatividade. Da Banda de Ipanema, com o resgate das marchinhas, aos blocos de sambas temáticos, como o Suvaco do Cristo, passou-se aos blocos atuais, que são de uma variedade impressionante. Há os blocos de sopros, alguns especializados num único instrumento, os de maracatu, de frevo, de rock, de música latina, eletrônica ou sertaneja, sem falar naqueles especializados em homenagear compositores específicos. 

 

Algumas dessas formações cresceram e passaram a aceitar as regras da municipalidade. Outras não, ou por serem muito pequenas e sem recursos, ou por simplesmente não desejarem ser oficializadas. O Boi Tolo, por exemplo, tem boa parte do seu charme na anarquia dos seus trajetos e na fragmentação do próprio bloco. Mas, nem por isso esses blocos devem deixar de receber uma rede de apoio da Prefeitura e do governo do Estado. Não há porque condená-los, carnaval é mesmo uma subversão. E já há um fluxo considerável de turistas especialmente para essa festa nas ruas. 

 

A distinção no trato imposta entre oficiais e não oficiais se mostra perversa com a cidade e os foliões. A estes últimos não são oferecidos nem banheiros químicos, nem policiamento. Como resultado, por um lado, isso cria a necessidade do folião se virar como pode, deixando um rastro de sujeira e fedentina. Com razão, isto produz certa animosidade dos moradores. Por outro lado, o descaso do poder público gera a insegurança que produziu o esfaqueamento de uma pessoa no fim de um dos ensaios da Orquestra Voadora. 


Os poderes públicos, e em especial a Prefeitura, deveriam deixar de ter preferências e passar a apoiar todas as expressões do carnaval carioca, sem distinção. O que se pede é que, em todas as áreas onde haja o costume de se festejar seja disponibilizada uma rede de instalações sanitárias, atenção à saúde e à segurança. Não é muito, é o justo retorno da municipalidade a quem tanta alegria nos traz. 


Artigo publicado em 09 de fevereiro no Diário do Rio

quinta-feira, 8 de fevereiro de 2024

Chilear

Vulcão Osorno-foto Roberto Anderson

Com consciência política, mas jovem. Capaz de encarar um convite do tipo apareça em Santiago como um convite concreto. E, sabedor de que apenas um ano antes havia se passado um terrível e violento golpe de estado, incapaz de medir os perigos para um jovem cabeludo em terras chilenas. Outra ditadura militar, bem mais sanguinária do que aquela à qual já estava submetido em casa. 

A viagem se estendera desde o Rio, passando pelos confins do Mato Grosso, pela Bolívia, em estado de sítio, e pelo Peru até Lima, onde também vigorava um toque de recolher. Era o verão das ditaduras nessa parte do Hemisfério Sul. De Lima a Santiago a grana só permitia uma viagem de carona. E ela se deu sobre caixotes de aves, sobre cargas de cereais ou na boleia de um caminhão bem acabado, cujo radiador esquentou e explodiu no meio do deserto, na Pan-americana. 

A entrada no Chile foi a pé, porque nenhum motorista iria se responsabilizar por aquele viajante fora de contexto. Comparados aos caminhões que circulavam no lado peruano, os chilenos eram um luxo, minuciosamente fiscalizados pelos carabineiros. A carona não vinha fácil. Um motorista disse: o tempo dos favores passou. E o toque de recolher exigia que ao anoitecer já estivesse em algum caminhão. Num trecho mais longo, a sorte foi encontrar um motorista que se propôs a dar a carona, em troca de que fosse mantido acordado...

Em Santiago, na casa da menina anfitriã, ouvia-se bem baixinho, para não ser escutado da rua, músicas de Violeta Parra e Quilapayun. Era o mais revolucionário que se podia fazer. E conjecturava-se onde poderia estar um dos seus irmãos, envolvido com a oposição e sumido há uns dias. Esta foi a primeira vez no Chile e, olhando em perspectiva, parece que foi realmente arriscado. 

A segunda vez foi durante o fortíssimo terremoto de 2010. Acordado no meio da noite com a casa balançando e com o som das paredes e janelas se batendo, foi difícil encontrar a porta de saída, o botão que a abria, e o que poderia ser um lugar seguro para se estar. Em meio a tremores secundários, ficou claro para os habitantes daquela cidade ao sul de Santiago que aquele não era um terremoto qualquer. O país é forte em emoções.

Comprido e espremido entre os Andes e o Pacífico, o Chile é um país de paisagens absolutamente contrastantes. Áreas desérticas ao Norte, vales de vinhedos ao centro, e um território austral, de paisagens sublimes, que vai se desfazendo em ilhas em direção ao Estreito de Magalhães.

Vá ao Sul, diziam as pessoas do Norte. Lá, eles são amáveis e são lindas as paisagens. Essas exortações vindas de outras amáveis pessoas, moradoras de Arica e de Iquique, fazem pensar na sua generosidade em relação aos compatriotas do Sul. Chegar aí, nessa terceira visita, é adentrar um território de vulcões, lagos e florestas. É saber sobre os bravos Mapuches e Huichilles, que resistiram ao colonizador, foram escravizados, mas até hoje lutam por seus direitos. É conhecer a Ilha de Chiloé, com suas lindas igrejas de madeira. 

É passar entre montanhas ainda cobertas com restos de neve durante o verão. Até quando resistirão à crise climática? É encontrar vulcões que vão marcando a paisagem e definindo territórios. O Osorno, há duzentos anos quieto, com seu cone perfeito, terreno pedregoso, terminando em branco de neve. O Calbuco, que em 2015 entrou em erupção e cobriu de cinzas a pequena cidade de Ensenada. O Tronador, cujo nome remete aos estrondos provocados pelo derretimento de suas geleiras. 

Nas partes mais chuvosas, há densos bosques, e estepes nas áreas mais secas. Nos bosques, linhas claras aparecem entre as árvores verdes do verão. São os troncos secos daquelas que já cumpriram seu ciclo de vida, mas continuam de pé entre suas irmãs. 

E lagos, muitos lagos, ladeados por montanhas que se espelham em suas águas esmeraldas, azuis intensos ou verdes claros, resultado da variação de sedimentos vulcânicos em seu leito. Essa beleza se estende para o lado argentino da cordilheira. Viajar por esses lagos é vivenciar a dita divina beleza que nosso planeta consegue abrigar. Hay que volver a Chile. 

Artigo publicado em 01 de fevereiro de 2024 no Diário do Rio. 

Cores e ladeiras

Valparaíso - foto Roberto Anderson

Sobe-se muitas ladeiras. Ao dizer muitas, entenda-se muitas mesmo, mais do que as pobres canelas da maioria possam suportar. As ruas serpenteiam morro acima em curvas fechadas que exigem perícia dos motoristas. Micro-ônibus são o meio de transporte principal. Uma mistura de casas, casarões e palacetes, em platôs de diversas alturas, e em variadas posições, criam o efeito presépio. Lá embaixo se avista as águas da baía, de onde sopra um refrescante ar marinho. 

Poderia ser a descrição de Santa Teresa, no Rio de Janeiro. Mas, é Valparaiso, no Chile. Graciosa cidade à beira-mar, com uma exígua área plana e uma enorme quantidade de morros e morrotes, os cerros, que se sobrepõem uns aos outros, se interligam por ladeiras que sobem e descem, e onde uma população criativa e acolhedora se instalou. 

Alguns desses cerros, especialmente o Alegre e o Concepción, foram marcados pela ocupação de imigrantes alemães. Ali, eles construíram casas inspiradas em suas origens e igrejas com torres em agulha. Muitas dessas casas são revestidas por chapas metálicas onduladas, vindas da Inglaterra desde o final do século XIX. Tais chapas, que recebiam cores vibrantes, hoje se mostram um suporte ideal para a obra de artistas do grafite, que passaram a ocupar todas as superfícies disponíveis, gerando uma verdadeira galeria a céu aberto. 

A cidade é um enorme ponto de atração turística. O visitante sempre encontra uma escada colorida, uma fachada inusitada, um grafite, ou arte urbana, dependendo de como se queira nomear, tudo contra um céu, em geral muito azul, e com o mar ao fundo. Uma grande quantidade de bons restaurantes, cafés e galerias de arte são os pontos de apoio dos visitantes. Sem uma sensação de insegurança a atormentá-los, o que, infelizmente, se vivencia no Rio. 

Curiosamente, as partes altas da cidade parecem bem mais cuidadas do que as partes planas, junto ao porto, onde há uma certa confusão de vendedores ambulantes, lixo nas ruas e prédios descuidados ou fechados. Aí é onde se encontra a administração pública, o comércio e os escritórios. É também onde se localiza o mercado, uma interessante construção em enxaimel metálico. 

Como o porto ocupa quase toda a frente marítima da cidade, esta não usufrui muito do contato mais próximo com o mar. O mar então se apresenta como a paisagem vista do alto e nos pratos de peixes e mariscos frescos servidos nos restaurantes. Próxima ao porto está a avenida Brasil, com seu canteiro central emoldurado por uma aleia de palmeiras-do-chile. É uma beleza de projeto paisagístico, ofuscado pelo descuido com a pavimentação e a liberalidade com o estacionamento sobre as calçadas.

Valparaiso, Valpito para os íntimos, é lugar para esquecer a pressa, deixar-se levar pela curiosidade em descobrir uma nova rua, uma nova escada, uma graça agregada a algum balcão, ou um desenho emoldurando alguma porta. Se se dispuser a ter calma, lá o passeante se sentirá livre como as gaivotas que voam por cima dos telhados da cidade.

Artigo publicado no Diário do Rio em 25 de janeiro de 2024.

Desigualdade territorial e (in)justiça ambiental

Enchente no Rio de Janeiro 2024

Nesse início de 2024, novas enchentes atingiram principalmente os bairros cariocas mais próximos à Baixada Fluminense e municípios daquela região. Essas áreas afetadas por alagamentos, com perdas de vidas e de bens materiais, são caracterizadas por serem áreas de moradia de pessoas mais pobres, e com pouquíssima infraestrutura de saneamento. De acordo com a realidade brasileira, essa população é predominantemente composta por pretos e pardos.

Como reação a essa situação, reavivou-se o debate sobre as consequências desiguais das calamidades ambientais e climáticas, conforme a situação social dos habitantes das cidades. Essa desigualdade econômica e territorial, também foi tratada com foco na questão racial, a partir da expressão racismo ambiental. No entanto, é preciso se questionar até que ponto a racialização desse tema não desvia o foco da raiz do problema, que seria a desigualdade econômica, característica do sistema capitalista, aqui um capitalismo selvagem. Assim, vale a pena revisitar a noção de justiça ambiental, que busca explicitar situações de injustiça nos territórios populares.

O movimento por Justiça Ambiental veio contestar a noção anteriormente dominante no movimento ambiental-ecológico de um meio ambiente uno, cujos problemas afetariam uniformemente a todos. Ao introduzir no debate ambiental as contradições existentes nas sociedades, o movimento por Justiça Ambiental explicitou que a questão ambiental é atravessada por contradições sociais.

Segundo David Harvey, os ricos ocupam nichos privilegiados no habitat, enquanto os pobres tendem a trabalhar e viver nas zonas mais tóxicas e arriscadas. Segundo o autor, nos EUA, o movimento por justiça ambiental e contra o racismo ambiental tornou-se uma força política significativa. Ele parte da constatação de que são as áreas ocupadas pelos pobres e por grupos raciais étnicos e culturais discriminados aquelas mais expostas aos problemas ambientais. Esses grupos têm dificuldades, impostas, de acesso aos recursos naturais e suas áreas são aquelas destinadas a receber os resíduos tóxicos e as atividades industriais poluentes.

Outra característica importante do movimento, é a de trazer para a discussão ambiental uma escala mais humana, em que os danos ambientais sejam enquadrados numa análise que considere a pobreza, as questões de classe social, de gênero e de localização geográfica. Ela permite superar uma visão de “culpabilização das vítimas”, na medida em que a pobreza muitas vezes é vista como um problema ambiental em si mesma e responsável pela dilapidação dos recursos, e não como uma questão de desigualdade na distribuição das riquezas.

O marco da luta por justiça ambiental foi o caso Love Canal em Buffalo, no Estado de New York, quando, em 1977, descobriu-se que os porões de casas da área estavam cheios de líquidos contaminantes, em função de terem sido indevidamente construídas sobre um canal aterrado. Em sua luta, o movimento por justiça ambiental tem aliado objetivos ecológicos a objetivos sociais, num processo que visa reforçar e empoderar as posições dos grupos em situação de desigualdade. Assim, movimentos de base local passaram a se articular na defesa de suas áreas de moradia, contra o despejo de substâncias tóxicas, contra localizações de atividades poluentes, ou contra a falta de condições adequadas de moradia.

Em sua organização, os movimentos por justiça ambiental são uma reação ao distanciamento daqueles que trabalham numa perspectiva global, os “globalistas”, dos problemas locais. Com isso, o movimento por justiça ambiental se mostrou uma renovação e radicalização revigorada do movimento ambiental, na medida em que foca nas vítimas ambientais.

A partir destas lutas localizadas, tais grupos realizaram uma ponte com temas mais gerais, crescendo em termos de abrangência territorial e social, e adotando uma visão que relaciona meio ambiente e justiça social. As questões levantadas pelo movimento por justiça ambiental são muito pertinentes a outros grupos sociais de outros países, especialmente aqueles do Sul Global, já que neles se repete o padrão de atingir bairros e empregos destinados aos pobres com poluição industrial ou com saneamento deficiente.

É importante salientar que a luta contra a pobreza, e contra condições de injustiça ambiental, se trava em condições muito difíceis. A nova realidade de ressurgimento da extrema-direita exige ainda maior atenção e clareza na comunicação. Sem se descuidar das lutas contra o racismo, a misoginia e a homofobia, entre outras, é fundamental a construção de discursos abrangentes que mobilizem o conjunto dos trabalhadores e pobres em geral das cidades e do campo. Nesse sentido, o conceito de injustiça ambiental tem muito a contribuir.

Artigo publicado no Diário do Rio em 19 de janeiro de 2024.